A música popular se parece às vezes com o cinema. Existem, e não são poucos, clássicos da música que se comportam como "refilmagens" de obras esquecidas.
O trabalho artístico, mais do que com princípios corretamente empregados, tem antes a ver com resultados pragmáticos que dependem, não raro, do acaso, da sorte.
A trajetória de "My Way" ilustra perfeitamente esses paradoxos.
A canção celebrizada por Frank Sinatra em 1969, é adaptação americana de um original francês. No mesmo ano também gravou "If you go away", traduzida para o inglês por Rod McKuen, da obra prima de Jacques Brel "Ne me Quitte Pas (1959)" algo que soa não menos patético do que a tradução de Ronnie Von quando reduziu "Girl (1965 Lennon/McCartney)" à "Meu Bem".
Claude François (que morreu eletrocutado no chuveiro) compôs em 1968, com Gilles Thibaut e Jacques Revaux " Comme d´Habitude" (Como de costume), e sua letra, falando sobre um dia comum na vida de um casal, embora melosa e tediosa, quem sabe tenha inspirado uma composição superior "Quotidiano" (1971), de Chico Buarque.
O próprio Revaux, antes da letra em francês, escrevera uma em inglês (For me), mas foi Paul Anka que, após comprar o disco em Paris, compôs-lhe (preservando a melodia) um texto totalmente distinto e o mostrou a seu amigo "Ol´Blue Eyes". O resto é história.
O contraste entre ambas: enquanto a de François, mornamente amorosa, consiste numa ladainha à mesmice, a de Anka/Sinatra, cujo nome título quer dizer "à minha maneira", homenageia o individualismo anglo saxão, descendendo em linha direta de "If" (Se), o poema mais conhecido de Rudyard Kipling (1865 - 1936). "Se és capaz de manter a tua calma, quando, / todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa./ De crer em ti quando estão todos duvidando, / e para esses no entanto achar uma desculpa."
Um possível desdobramento de "My Way" foi "I am what I am". Hino da independência gay, composto por Jerry Herman para seu musical da Broadway, " A Gaiola das Loucas" (1983), baseado em "La Cage Aux Folles" (1978), filme franco-italiano de Edouard Molinaro com Ugo Tognazzi, fez sucesso em 1984 tanto na voz de Shirley Bassey quanto na de Gloria Gaynor.
A maioria das canções raramente se desvincula de um intérprete, de preferência seu compositor, porém a maleabilidade da criação de Françoise, Anka e outros, talvez seja a exceção que confirme a regra.
Apesar de muitos a terem cantado, ninguém, depois de Sinatra, imprimiu-lhe uma marca tão original quanto John Simon Ritchie, ou melhor, Sid Vicious, que converteu-a, no fim dos anos 70, numa zombaria heroinômana mortalmente séria. Apresentada sob a forma de um "clip" em "Sid and Nancy" (1986), de Alex Cox, com o Grande Gary Oldman no papel de Vicious, "My Way" é também o ponto alto do filme.
Extraído da coluna de Nelson Ascher.
FSP 09/02/2004 - Ilustrada.
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